A caneta sherazade

Era uma vez só, que a caneta escrevia. Enquanto o escritor fazia a vez de quem conta ela fazia de conta que não ligava – mas desligava, se não quisesse mais escrever. Era uma vez e só ela sabia quando veria ou não terminar. Era só de uma vez e pronto, ela se apagaria à medida que a frase terminava. Não tinha a paciência resignada da inspiração alheia. Não haveria tempo para isso com tanto trabalho a ser feito: eram gradações em cinza quase que intermináveis, entre o preto e o puro apagamento das palavras. Esses escritores adoram levar qualquer uma para a folha, e contam e recontam por quantas escritas já passaram. A caneta captava no ar, por pura expiração, as afirmações mais bravias - sem dispensar atenção às leves insinuações. Era uma caneta certamente feminina, por isso dava o troco de vez, e esquecia. Esquecia do autor, sem dúvida. Muito vingativa? Só se se contasse o porquê, para o que deveria se manter no rol das coisas inexplicadas. E até o cê explicar o cecidilha ela imaginava: e se... ser trocada por outra, então, era sem consolação com ela nem uma gotinha de tinta a mais sairia. Troca-se ela por outras e nada mais escrito vingava. Muitos escritores de uma hora para outra se viam fracassados – a caneta era muito amiga do traço e por isso sentia ciúmes de vê-lo se esfregando com outras. Não era uma caneta de estimação, pois se recusara, desde muito cedo, a fazer papel de amestrada. Afinal, de uma vez por todas, era só: uma caneta com seus ciclos adiantados; e em certos dias as palavras viriam avermelhadas; mas ela era uma senhora infalível. Apesar de ter toda pose de vara como já se disse era feminina. É ao menos o que um autor disse, entretanto no fundo é a palavra o que conta. E, obviamente, tudo se renovaria e o desejo que por ela passava a arrastava para folhas e folhas e outros lugares fazendo a reputação, sem ser puta por isso...é claro, só quando ela quisesse e ponto.

A guisa de retiro

"Mas um dia mostrarei a Deus a minha face. E esta será tão terrível que Ele se assustará. Minha face lhe dirá olhe, olhe o que você fez de mim ao me fazer humana. Mas será a cara de um cadáver sem susto, já sem perigo de morrer, nada mais tendo a temer. Quando eu perder meu corpo triste ficarei de espírito livre e solto nos ventos das montanhas. Sem nada o que fazer por toda a eternidade. Pousando numa árvore de tronco escuro, ora pousando numa das rochas da terra.As grandes perguntas me aterrorizam.Não ouso fazê-las. Mas eu serei alguma coisa depois de morta? E para quê?"

CL

Displicência própria

Escrever por sobre as fotos de um rosto, até que não se possa mais distinguir os traços. E enquanto por um momento sequer o risco se cumprir, nesse átimo teremos apenas o olhar como testemunho. Até que não restem fotografias. O olhar caça por entre as palavras o que quer que seja, límpido ou sujo, profundo ou na superfície. E sem enfeite as máscaras se desfazem, sem que saibamos ainda o que, além disso, é possível se fazer de nós. Não haverá identidade, pois a sombra não costuma ter dono, é apenas uma emissão fulgaz. Sombra, prenúncio da noite na qual, certamente, as fotografias insistem em resistir ao tempo. Para uma pequena caixa elas voltam, guardadas. E a lembrança é só o "apenas" – das tristezas e alegrias - por sob o curso da vida, ainda que baste para a vida o próprio esquecimento.

um livro de preferência

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